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Marcia Vezzá de Queiroz

Márcia Vezzá de Queiróz atuou em teatro desde criança em família, quando um tio, o diretor Roberto Caieli, resolveu fazer peças infantis. Participou de várias montagens no ABC. Vivenciou a ditadura militar. Imagem do Depoente
Nome:Marcia Vezzá de Queiroz
Nascimento:15/09/1954
Gênero:Feminino
Profissão:atriz / advogada
Nacionalidade:Brasil
Naturalidade:São Paulo (SP)

Arquivos de Imagem

Márcia Vezzá_I001

Modelo usando vestido de Márcia Vezzá, 2004, São Caetano do Sul.


Transcrição do Depoimento de Marcia Vezza de Queiroz em 29/07/2003
Depoimento de MÁRCIA VEZZÁ DE QUEIROZ, 48 anos.

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, 29 de julho de 2003.

Núcleo de Pesquisas Memórias do ABC 

Entrevistadores: Priscila F. Perazzo, e Daniela Macedo da Silva.

Transcritores: Meyri Pincerato, Marisa Pincerato e Márcio Pincerato.

 

 

Pergunta:

Márcia, gostaria que você começasse contando sua data de nascimento, onde você nasceu e um pouquinho da sua infância na cidade.

 

Resposta:

Eu nasci no dia 15 de setembro de 1954, na cidade de São Paulo. Morei pouquíssimo tempo em São Paulo, poucos meses, e meu pai e minha mãe já se mudaram para Santo André. Na verdade, só me lembro de Santo André, às vezes é até estranho quando eu digo que nasci em São Paulo, porque eu não tenho nenhuma ligação com a cidade de São Paulo. Santo André era uma cidade não pequena, já era uma cidade que estava começando a crescer, já estava começando a receber operários para trabalhar nas indústrias de automóvel, era uma cidade que estava se desenvolvendo, mas era uma cidade que tinha muita tranqüilidade. A gente morava em uma rua no centro da cidade, na Álvares de Azevedo. Hoje eu tenho meu escritório lá, bem próximo de onde eu morava, a casa não existe mais. A gente brincava na rua, a gente ia para a escola sozinho, a pé, voltava sempre em grupo, juntos, saía de uma casa, pegando outro na casa, até ir para a escola. Próximo da minha casa tinha o que é hoje o Departamento de Água e Esgoto, então os canos de água ficavam na rua e a gente brincava de casinha, cada uma tinha seu cano, era sua casinha, a gente levava comidinha para o cano. Minha mãe dava aula na (escola) Júlio de Mesquita, e eu não sei se é bem verdade, mas diretor de lá, professor Damaceno, permitia que ela ficasse em uma sala. Era normal que os professores mudassem de sala, no caso dela, ela ficava sempre em uma sala que era bem no canto da escola, com uma janela grande e dessa janela ela gritava para a gente: Sai daí, vai para casa, vai fazer lição. Tinha o riozinho, a gente brincava no riozinho, ela ficava gritando, o pessoal que saía da escola, todo mundo sabia que era a casa da professora. Ela era professora de ciências, e o pessoal mexia com a gente, brincava, trazia doce, para ver se a gente pegava prova, roubava prova, mas era uma coisa muito tranqüila. Claro que não era só isso. A gente teve problemas sérios, minha mãe se separou cedo, eu sou a filha mais velha, sou a que lembro mais dessa fase bastante difícil, ela se desquitou aos 28 anos, ninguém era desquitado, literalmente ninguém, só ela era desquitada, então isso era muito ruim. Eu estudava no colégio das freiras, nós éramos assim muito paparicadas no colégio das freiras e eu me lembro que quando minha mãe se desquitou, as minhas amigas pararam de conversar comigo e eu não entendia.  

 

Pergunta:

Mais ou menos com quantos anos?

 

Resposta:

Eu tinha oito ou nove anos, mais ou menos por aí. E as minhas amigas pararam de conversar comigo e eu não entendia por quê. Eu tinha uma amiga muito amiga, íntima, a gente sempre tem alguém que é bem próxima, eu estava na 3ª série se não me falha a memória, e a gente se conversava no banheiro, a gente fazia sinal no recreio, eu ia para o banheiro e ela também, eu entrava em uma porta, ela entrava na outra e a gente passava por baixo da parede. E foi aí que eu descobri que as outras não podiam conversar comigo, não podiam ser minhas amigas, porque eu era filha de desquitados. Não que as crianças vissem isso como um problema, nós crianças não não encarávamos isso como um problema, mas os pais encaravam. Mas a minha mãe também tirou de letra isso. Começou uma pressão, ela falou que as freiras convidaram gentilmente que a gente saísse da escola, e ela pôs a gente no colégio do Estado, o que para mim foi ótimo, porque no colégio do Estado tinha menino, coisa que no colégio das freiras não tinha, as classes eram mistas e eu achei maravilhoso. Eu vinha de uma escola que só tinha dondoca, então logo que eu cheguei todos os meninos queriam me paquerar, queriam me trazer, eu ganhei o ódio das meninas, evidente, demorei um tempo até conseguir descobrir uma amiga, mas para mim foi ótimo. A minha irmã, Mônica, que é um pouco mais nova do que eu, já teve mais problema, porque a Mônica era a queridinha das freiras, saía nos desfiles de anjinho, participava de todas as procissões, ela levava muito a sério o colégio das freiras, então ela resentiu mais. O Marcelo estava fazendo maternal, jardim, qualquer coisa, também não percebeu. Criança passa muito rápido por essas coisas, é a vantagem da infância e a Maia nunca estudou no colégio das freiras, ela já foi direto para colégio público e o colégio público nessa época era um colégio muito bom, de nível excelente. O Américo Brasiliense era um colégio de nível muito bom, as melhores famílias colocavam seus filhos lá, meus professores entravam de jaleco, usavam aquele avental, o professor entrava na sala de aula você levantava, cumprimentava o professor, não faz tanto tempo assim, mas por ser hoje professora do Estado, também dei aula no Estado, é assim a água e o vinho, a qualidade. Os professores eram as pessoas mais importantes dentro de uma cidade. Era o médico, era o advogado, era o juíz e os professores, era uma profissão em que as pessoas eram valorizadas porque eram professores e eu tive acesso talvez a uma das melhores educações, eu não precisei sair de Santo André para estudar.  Nesse período, eles faziam teatro, a minha família toda fazia teatro. Começavam, às vezes, ensaiando na casa da minha avó no domingo depois do almoço, terminava o almoço, a família era muito grande, seis filhos da minha avó e do meu avô, meu avô já tinha morrido nessa época, minha mãe tinha quatro filhos, uma tia namorava, a outra tia também namorava, tinha amigo, era uma família italiana muito receptiva, sempre foi. Acho que é a característica principal da família da minha mãe, a gente imagina inclusive que todas as famílias são assim, e é um equívoco, porque quando eu começo a contar da minha família, do relacionamento, as pessoas ficam olhando e falam assim: Mas é normal? Para mim era normal. Minhas tias sempre ajudaram, sempre. Se uma não podia vir, a outra vinha, se estava namorando e era dia do namorado, minha tia Ivone, e várias estava namorando, ia com o meu tio Roberto e namorava na minha casa e a gente ficava morrendo de curiosidade de olhar se eles iam beijar, se ia ter língua, se não ia ter língua. Era assim uma coisa. Minha mãe ia estudar, ia dar aula, não era uma coisa problemática. Hoje, eu sou profissional, sou divorciada, também tenho filhos e eu sinto a grande diferença. Minha mãe nunca saiu com culpa, se teve, ela nunca demonstrou, ela saiu numa boa, era natural ela sair para trabalhar, era natural ela sair para estudar e largar a gente em casa. Hoje eu vejo que as mães saem com uma culpa terrível se arrastando, porque a criança vai ficar neurótica, porque ela vai se sentir infeliz, porque ela vai ficar traumatizada. Nós não tivemos nenhum traumatismo, por incrível que pareça. Acho que seríamos um prato cheio para um terapeuta, quatro filhos de uma mulher desquitada e jovem, um desquite violento na cidade, porque a família do meu pai era uma família da sociedade de Santo André, ela não era, ela vinha de família humilde, simples, mas a família do meu pai era de uma família de sociedade, então era uma coisa assim mais agressiva, porque todo mundo vivia um casamento hipócrita, a grande maioria vivia e ela não se sujeitou a isso, ela não quis viver esse casamento de hipocrisia e virou a mesa, como eu não sei, eu não lembro exatamente como, mas ela virou, e fomos juntos. Era meio natural. Elas não podem estudar na escola porque as freiras não gostam, tudo bem, muda para o Estado; não podem conversar com a amiga porque o pai não deixa, tudo bem, arruma outra amiga. Foi meio assim, sem traumas, sem ninguém se desesperar, sem precisar de terapia, nunca ninguém foi dessa fase de terapeuta, que eu saiba ninguém foi, e todo mundo foi bom aluno de escola, todo mundo fazia prova, todo mundo era disciplinado. Ela tem um traço bastante autoritário, como mãe, então era uma única vez que ela falava, agora é hora de dormir, não importava se você tinha sono, se você estava super acordado, aceso, falava boa noite e ia para a cama. Então, evidentemente, isso facilitava a vida dela, porque ela teve quatro filhos, em um espaço de seis anos, então era uma "trempa", era uma circunstância difícil. Nesse período, voltando para o pessoal de teatro, eles faziam esquetes, iam montar uma peça, precisava fazer uma improvisação e sempre tinha criança, então vamos fazer a fila do ônibus, uma mãe com uma criança, um engraxate e a gente gostava de fazer isso. Então, o teatro na nossa vida e na nossa infância era brincadeira, era continuação da brincadeira que a gente já tinha, só que com os adultos, e isso fortaleceu muito o nosso relacionamento, porque eu brincava com a minha tia, eu brincava com o meu tio, eu brincava com a minha mãe. Eles estavam fazendo teatro, nós estávamos brincando. Então isso deu certo. Passado um certo tempo, ela percebeu que a gente gostava de fazer teatro, alguns mais, outros menos, eu e o Marcelo gostamos mais, sempre fomos mais envolvidos, a Mônica e a Maia menos, e aí surgiu idéia de fazer uma peça infantil. A primeira peça que fizeram no grupo infantil foi uma peça da Maria Clara Machado, que é muito montada, que é  Pluft, o fantasminha", tem inúmeros grupos que montam, tem até filme sobre essa peça, e, que eu saiba, ela nunca tinha sido montada por duas crianças, nos papéis que são infantis. O Pluft foi a minha irmã Mônica. Pluft é um fantasminha de sete anos que tem medo de gente, ele mora em um local em que vai aparecer uma menina, a Maribel, que foi o personagem que eu fiz, que tinha nove anos, ela é seqüestrada, a Maribel, e levada para esse lugar, ela tem medo de fantasma, e aí junta o fantasma que tem medo de gente e a criança que tem medo de fantasma, e a história é isso. E era uma coisa delirante, estranho a gente ver a platéia assistindo e gostar. Eu lembro que a primeira vez que a gente estreou depois que terminou, o pessoal aplaudiu, eu não achava que isso era uma coisa que as pessoas iriam gostar, era divertido eu fazer, mas nunca imaginei que alguém assistindo gostaria. Tinha muita criança que assistia e as peças ficavam, às vezes, bastante tempo em cartaz, não era uma coisa que ficava um final de semana ou dois; ficava quatro ou cinco, até seis meses. Enquanto tinha público e queria assistir, a gente apresentava e era bastante gostoso porque eu fazia com a minha mãe, com o meu tio, era uma coisa tranqüila.

 

Pergunta:

Márcia, detalhe um pouco como foram os ensaios, aprender o texto, fantasias?

 

Resposta:

Não era difícil decorar, porque a história era relativamente simples e a gente tinha facilidade. Eu sempre tive facilidade para decorar o texto, a Mônica tinha um pouco mais de dificuldade. As marcas, eu me lembro, quem dirigiu essa peça foi minha tia Noretta, no papel apareceu minha tinha Noretta, mas quem dirigiu, na verdade, foi muito mais a minha mãe, a marca da peça foi feita assim: os adultos  vão se adaptar às crianças, então era natural eu me movimentar quando eu sentia necessidade, a roupa, o figurino minha tia Ivone sempre que costurou, então não precisa dizer que a gente parecia uns bibelôs. O que tinha de mais bonito era para a gente, a minha roupa era linda, tinha um saiote todo de renda, eu só queria andar com o saiote, se pudesse entrar em cena de saiote. O cenário normalmente a gente montava com pedaços de outras peças. Sobrava uma gambiarra, sobrava não sei o que, eu ainda nessa época não montava cenário, depois entrei no grupo já montando cenário. Um outro tio mais novo, meu tio Lóis, que tinha feito eletrotécnica, fez a mesa de luz, a parte de iluminação então era toda ele que fazia, uma mesa linda, nós tínhamos uma mesa pela qual todos os outros grupos babavam. Nós aprendemos a fazer refletor com lata de leite ninho. A gente tinha muita criatividade, pouco dinheiro, o grupo dava, o Panelinha tinha alguma verba, o clube fornecia. Eu lembro que uma outra peça que nós fizemos, que foi Julieta e Romanoff, nós ganhamos todos os tecidos da Rhodia; a Rhodia deu peças e peças, veio uma peça de veludo vermelho, e a minha tia Ivone falou assim: Nós vamos fazer a roupa da Julieta de veludo vermelho. Eu tenho até hoje o vestido guardado na casa da minha mãe, deve ter uns vinte metros de veludo vermelho, pesa uns trinta quilos, tanto que precisou fazer reforço dentro, uma espécie de um colete para eu poder vestir a roupa e a minha tia tinha medo de que a saia despencasse conforme eu andasse de tão pesada que era a roupa. Eu achava a coisa mais linda, era lindo, porque havia esse empenho em fazer as coisas. Como você fazia e você ensaiava aos domingos, normalmente, eu me lembro de ensaiar sábado à tarde. Nos primeiros ensaios, começava o ensaio de mesa, para trabalhar o texto na minha casa ou na casa da minha avó, acho que isso era o que a gente dava mais trabalho, porque a gente não tinha flexão de interpretação. Então, acredito que para eles era mais difícil fazer a gente dar tonalidades diferentes, mas também não que a gente não fosse lá grandes atrizes, o resto quebrava o galho, os adultos quebravam a interpretação, e nunca senti dificuldade. Eu lembro que eu passei até para a situação inversa, quando filha de desquitados, meio rejeitada, e quando comecei a fazer teatro, que as pessoas assistiam, como alguém muito especial, gente que se aproximava, falava assim: Nossa! Ela faz teatro, que coisa boa! Que bonito! E era aberto, era um público familiar, as festas eram familiares, então, podia ir qualquer pessoa, não tinha isso de ficar bebendo, nem fumando, nem droga. Isso é muito depois, isso vai acontecer também na minha vida, mas aí quando eu vou para o profissional. Esse período do grupo Panelinha é muito tranqüilo, não tinha nenhum tipo de envolvimento com nada que pudesse prejudicar a minha formação, a minha personalidade. Não tive acesso a essas coisas e não fui seduzida para nada disso, era natural, era tranqüilo esse período.

 

Pergunta:

Você deve estar se referindo, quando fala de drogas, do final da década de 60, então, você podia falar um pouco como era a juventude nesse período, independente do teatro, da escola?

 

Resposta:

É um pouco difícil te dizer independente do teatro, porque eu vivia, dormia e comia teatro, teatro era a minha, era o meu objetivo de vida, a minha carteira profissional é de atriz. Eu abandonei essa idéia depois que eu casei, tive filhos, aí vi que economicamente ficava muito difícil, não impossível, foi o fraquejar, mas a minha vida toda foi em função do teatro. Então, não dá muito para separar, mas eu vou tentar te colocar. Eu fiz essa peça aos nove anos, continuei no grupo, eles montaram peças que não tinham mais como a gente entrar, que era circunstancial, minha mãe foi eleita presidente da federação, da FIANTA, e um pouquinho antes de ser eleita presidente, ela acompanhou o grupo, que eu imagino seja do Toninho Assunção, de São Bernardo, grupo Regina Paes, em um festival que aconteceu em Presidente Prudente ou em São José do Rio Preto e assistiu a uma peça infanto-juvenil. Na época, começava a se pensar a fazer alguma coisa para esses jovens, que era uma juventude que estava vindo com muita vontade, muito ligada à arte, gostando de coisas artísticas, muito diferente da juventude de hoje. Eu assistia pouquíssimo à televisão, nós não tínhamos o hábito de ver televisão, televisão não era uma coisa que nos seduzia, nós éramos uma juventude mais intelectual do que a de hoje, bem mais, e ela assistiu a essa peça e gostou muito. Era de um autor jovem, do Vendramini, José Eduardo Vendramini, é um autor de teatro até hoje. E ela pediu se ele permitia a montagem, e ela trouxe o texto para Santo André. Ela dava aula em uma escola, na escola Júlio de Mesquita, onde ela tinha um grupo de alunos que tinha um conjunto, hoje são bandas, o nome mudou, mas era conjunto e eles tocavam muito bem, eram músicos excelentes; eles se apresentavam, faziam bailinhos, além de serem rapazes muito bonitos, então, tinha uma mulherada em cima assim; aonde eles iam, eles tinham as tietes. Ela os convidou a fazerem essa montagem, eles toparam, eles musicaram, ela não trouxe as músicas prontas, tinha algumas letras já do texto, outras eles criaram, e eu entrei na peça evidentemente, até porque ela que trouxe o texto, se eu não participasse, eu só não fiz o papel principal porque não dava, não tinha idade ou alguma coisa assim, mas tudo que eu podia fazer, eu entrava. Eu fui fazer essa peça e foi assim um grande achado na minha vida: foi quando eu descobri que queria ser atriz, foi exatamente fazendo Ponto de Partida. Eu tinha quatorze anos, na estréia dessa peça, eu tive uma discussão muito desagradável com meu pai. Meu pai sempre foi uma pessoa ausente na minha vida, nunca participou, acho que ele tinha medo de pagar pensão, qualquer coisa desse tipo, ele ficava longe. Eu estava me preparando, à tarde em casa, a gente estava fazendo os retoques finais na roupa, porque as coisas aconteciam em cima da hora, não tinha muita grana, então conseguia o sapato na véspera da estréia, esse tipo de coisa, eu lembro que a gente estava usando um figurino que era calças brancas, blusas brancas estilo camiseta de manga comprida e a inicial do nome de cada um em feltro vermelho, e tinha um único ator, que era o Amauri, que fazia o papel mais velho nessa peça, que ficava vestido todo de vermelho, era o único que usava calça vermelha, blusa vermelha, e a inicial dele era em branco, porque ele fazia o papel de pai, de padre, toda a repressão era o vermelho, e o branco eram os jovens, então tinha também um jogo com o o figurino, e eu que estava pondo todas as blusas brancas para a minha tia Ivone alfinetar a blusa  e daí costurar porque naquele dia que as blusas tinham chegado. E meu pai ligou, pediu para falar comigo pelo telefone e brigou horrores comigo, disse que eu era prostituta, que eu era uma menina à toa, que eu estava saindo à minha mãe, que eu não prestava, que eu estava envolvida com o teatro. Eu fiquei muito chateada, mas muito chateada mesmo, bati o telefone, disse que ele não era pai, não era ninguém, que não mandava na minha vida, bati o telefone. Eu lembro que eu chorei, minha mãe acho que nem estava em casa, depois que chegou, ela me acalmou e falou que ele não não tinha nenhum poder, que ele não podia fazer nada, que eu devia fazer o que eu queria, que ela estaria do meu lado, e ela topava a briga, e se viesse pancada, podia não me preocupar que ela tocava bem. Coincidentemente, minha tia estava lá, meu tio estava lá. Então vai fazer teatro, foi aí que eu falei: Bom, eu vou fazer teatro, porque eu gosto, eu sinto um prazer. Teatro é uma coisa que dá um prazer que vocês não acreditam, posso ficar sem dormir, sem comer, beber, vamos ensaiar, vamos, todo mundo pode achar chato, para mim é um prazer enorme. Por que eu não vou fazer? A única pessoa que não representa nada na minha vida, não me diz nada! Vou fazer! E foi aí que eu comecei a me interessar. Também percebi nessa época, e aí já era moça, que quem fazia teatro moça era vista pelos rapazes como alguém que não era muito séria, para usar uma terminologia mais leve. Tive dificuldade para namorar, porque os poucos que se aproximaram para namorar, primeiro, não queriam que eu ensaiasse, porque queriam que eu  namorasse no sábado e no domingo, e disso eu não abria mão, o ensaio era mais importante, o teatro era mais importante; segundo, queriam eventualmente ter algum tipo de liberdade que as outras moças não davam, mas como eu fazia teatro, partia-se do princípio que eu daria essas liberdades, com o que eu também não concordava. Então, eu fui vivendo o teatro. O primeiro namorado eu fui ter com dezessete para dezoito anos, eu era relativamente velha, porque todas as minhas amigas já namoravam há anos, tinham quilometragem de namoro muito mais do que eu, mas eu não tinha esse interesse; eu só namorei gente de teatro, não precisa dizer, até hoje. Até hoje eu namoro ator, casei com ator, separei, sempre me envolvi com gente de teatro. Nesse período, a grande diferença que eu percebo é que eu comecei a trabalhar o aspecto político, que eles não tiveram, Panelinha, porque eles faziam um teatro familiar, eles escolhiam peças relativamente adocicadas, intriga de namorados, traziam coisas que não faziam parte da realidade brasileira, não faziam montagens brasileiras, e o movimento teatral profissional já tinha todo um corpo. Guarnieri já fazia textos pesados, Oduvaldo Vianna Filho fazia textos pesados, então já havia todo um movimento, a gente vivia a ditadura no seu período mais violento: Brasil ame-o ou deixe-o, 68, 70, então os grupos de teatro começavam a ter essa cara, começavam a ser mais ousados e a mostrar. O meu período de amador não teve nada disso, mas Antônio Petrin assistiu o Ponto de partida e o grupo Teatro da Cidade tinha acabado de ser criado, tinha montado uma peça, o Jorge Dandin com a Heleny Guariba dirigindo. A Heleni tinha uma trajetória política muito forte, a Heleni fez a escola de teatro da USP, hoje chama ECA, não sei como chamava na época, e depois foi fazer uma espécie de uma pós-graduação, uma especialização na França com o Plachion, que é um dramaturgo, uma pessoa que criou um método de teatro em Lion. Lion é uma cidade muito parecida com Santo André, tem as mesmas características: imigrantes, criação industrial, formação automobilística, e ela veio com essa idéia e casou. Sônia Guedes, Antônio Petrin, o grupo, o Acelim, o Nana, Bevilácqua, um grupo de pessoas querendo fazer teatro profissional. Petrin é originário também de teatro amador, só que ele fazia na igreja, fazia lá na igreja do Bonfim. Em um festival de teatro, ele ganhou a possibilidade de estudar na EAD, que era a escola mais importante, a escola de teatro da ECA, com nível colegial dessa época, era o técnico, e eles montaram esse grupo. Eu não participei da formação desse grupo, nem iniciei, mas a segunda peça, o Petrin queria dirigir, montar e queria que essa peça tivesse talvez um pouco do impacto que teve no Jorge Dandin. Nesse período a Heleni já tinha sido retirada de circulação, tinha sido presa, acho que ainda não tinha morrido, mas já estava nos porões da ditadura, e o grupo ficou perdido, ficou sem chão, e o Petrin assistiu essa peça, ele tinha uma peça do Martins Pena, O Noviço, que ele queria montar, ele foi à minha casa, até hoje eu converso com ele isso e brinco, foi na minha casa conversar com a minha mãe se eu podia fazer a peça, e ela falou que eu podia, sem problema, só que ele tinha que me pegar em casa e me levar de volta.  Então, ele saía do Parque, de fusca - que era o carro que ele tinha - pegava o Osley que era um ator gordo que trabalhou com a gente, pesadão, devia pesar mais de cento e trinta quilos, vinha no centro da cidade, me pegava, punha dentro do carro e a gente ia ensaiar em São Caetano, porque nós apresentávamos o espetáculo no Santos Dummont, em São Caetano, e depois na volta era a mesma coisa. Às vezes, eu acho que eles queriam sair para tomar cerveja, fazer alguma coisa, não podiam, porque tinha que me levar de volta, me deixar em casa. Quer dizer, eu saí de um esquema familiar e continuei, caí de novo na família, sempre fui meio paparicada nesse ponto. Depois eu fiz O Noviço com uma roupagem mais moderna, com alguma coisa assim de política, convivi com atores profissionais, com a Luzia, que já faleceu, com o Jonas, e falei: É isso mesmo que eu quero fazer. Só que com uma outra circunstância. Eu ganhei muito dinheiro, quer dizer, eu não ganhei tanto dinheiro, mas para quem tem quatorze anos, não sustenta casa, não paga aluguel, não paga nada, nossa!, era um monte de dinheiro. Toda semana, aos domingos, quando fazia o rateio, porque eu fazia teatro amador, não ganhava nada, só gastava, de repente eu fui para o profissional, que te pagam para fazer alguma coisa que você gosta, então eu falei: É aí mesmo que eu vou ficar, é essa a coisa que eu quero fazer. Aí eu fiz O Noviço, voltei e decidi com a minha mãe que eu queria fazer escola, eu fazia colegial, eu fazia colegial de manhã no Américo Brasiliense e à noite eu fazia Fundação das Artes, em São Caetano. Eu sou da segunda turma da Fundação, a primeira turma não se formou, então, teoricamente, eu sou da primeira turma que se formou. A primeira turma diluiu, o pessoal não continuou, e evidentemente, de novo minha mãe falou assim: Tudo bem, você pode fazer, mas aí tem que ir de ônibus. Passava na favela da Palmares, que era uma região perigosa, então o que aconteceu? Minha tia Noretta fez a prova também, passou, e lá ela foi ser aluna junto. Veja, enquanto que para todo mundo as coisas são difíceis, para mim as coisas eram fáceis, é uma continuidade da trajetória da minha mãe: eu queria fazer teatro, a família não fez oposição; eu quis estudar, não podia ir sozinha, porque eu tinha quinze anos, e realmente a escola não permitia, e eu só consegui fazer o curso da Fundação porque um dos professores era o Petrin e ele falou: Não, ela tem potencial e vai fazer. O outro professor era o Zé Armando. Ele dizia: Ela tem potencial e vai fazer. O Milton, que era diretor da escola, já tinha me visto fazendo teatro, eu já tinha viajado com os grupos de São Caetano, porque afora a disputa do festival, nós todos nos ajudávamos, a gente trocava texto, a gente emprestava cenário, a gente emprestava ator. Ator e atriz que era de um grupo, você convidava, se tinha o tipo físico, você convidava e não havia esse problema, essa disputa. Também tem uma circunstância muito excepcional, a televisão não atraía as pessoas de teatro, muito pelo contrário. O teatro era o Olimpo. Para atuar como atriz era o teatro, lá você está ao vivo, em cores, é a tua voz, é o teu corpo. Se você é ruim, a platéia percebe na hora, se você é boa, a platéia percebe na hora. O cinema era uma coisa ainda capenga, estava muito concentrado no Rio de Janeiro, era coisa meio de boazuda, de mulher, meio pornô-chanchada, então a gente tinha um certo cuidado com o cinema. A televisão estava começando, estava engatinhando, mas a minha formação não permitia, eu tinha verdadeira ojeriza de televisão. Nós não íamos. Você pode até observar que essa geração resistiu muito para chegar na televisão. Eu fiz uma peça com o Fagundes, ele estava fazendo a primeira novela na Tupi, ele já era ator de teatro há bastante tempo, ele tinha feito o tablado no Rio de Janeiro com a Maria Clara Machado, ele tinha feito teatro amador, ele tinha vindo para São Paulo, ele tinha feito teatro infantil, mas ele não ia para televisão, porque ele achava que era uma arte menor. Nós tínhamos preconceito para com a televisão, porque a televisão manipulava, a televisão dirigia, e nós tínhamos posição política. Eu achava que as pessoas iam ao teatro, iam assistir a uma peça, como, por exemplo, Os Fuzis Da Senhora Carraro, de Brecht, que é a história de uma mãe forte e violenta que perde o filho, eu achava que as pessoas iam sair de lá muito impressionadas, iam pegar armas, iam fazer guerrilhas. Eu acreditava nisso, eu tinha essa ilusão. Quer dizer, uma coisa hoje ingênua da nossa parte, mas eu imaginava que nós íamos fazer uma revolução no teatro, e, por uma série de circunstâncias, eu estava em um momento político, o país passava por uma situação política bastante difícil em 1970. Depois de terminar o colegial, eu entrei na faculdade de ciências sociais, então eu caí em uma faculdade em que isso se discutia muito, você falava, e não terminei esse curso, porque os meus professores sumiram, desapareceram; o curso acabou. A gente teve aula em um dia, e no outro dia fulano de política não vem mais. Foi na época em que o Fernando Henrique se mandou do Brasil, o Serra se mandou, foi uma caça às bruxas, foi uma situação muito ruim, vários amigos de teatro, você via em um dia, no outro dia não via mais. No teatro amador vocês perguntaram se minha a mãe passou algum tipo de medo, repressão, no Clube Panelinha não, mas na Fundação nós passamos muito medo. Não foi uma ou duas peças que a gente sabia que tinha gente na platéia que não era espectador, que a gente tinha que falar outra coisa, que a cena tinha que ser diferente. Então a gente ensaiava duas peças na Fundação, uma peça que podia ser apresentada, e a outra que a gente queria fazer. Normalmente, a gente mais ou menos sacava a platéia, porque além de tudo, eles eram muito burros. Eles têm uma postura corporal que denuncia. O milico, o censor se comporta diferente, ele não senta relaxado, ele fica com o peito de pombo, então você batia o olho, fulano está aí e pronto. Eu viajei para a Colômbia com o grupo de teatro da cidade, peguei uma época muito ruim, fui participar de um festival de teatro internacional e nós montamos O Evangelho Segundo Zebedeu, isso é de 1973, foi quando o Fagundes trabalhou com a gente, a montagem foi com a direção de Silney Siqueira, que era um diretor que já tinha ganhado no ano interior o festival internacional de Nice, na França, com uma peça, não sei se era o Alto Da Compadecida, alguma coisa assim, uma peça brasileira que fez o maior sucesso. E ele na época tinha montado essa peça com um grupo da faculdade de Direito do Largo São Francisco, o Centro Acadêmico Onze de Agosto, e tinha feito muito sucesso, mas eles participaram de um festival universitário. A Sônia e o Petrin assistiram e convidaram o Silney para montar o grupo de teatro da cidade e nessa época eu já fazia parte, eu já tinha carterinha, já tinha mudado o estatuto, eu já estava devidamente qualificada dentro do grupo. Nós montamos O Evangelho Segundo Zebedeu. O Silney trouxe alguns atores recém-formados da EAD, a Sheila e outros, alguns não prosperaram, não viraram atores nem atrizes. Nós tínhamos um grupo de música, era uma peça musical, e esse espetáculo foi inaugurado no dia 09, estreou no dia 09 de abril de 1973, no Teatro Municipal de Santo André, foi uma montagem de Dirbal Pivetta; ele usa, César Vieira, um autor de teatro, que faz teatro denúncia, então era bem a nossa cara, era bem o que a gente queria, e a gente apresentava para uma platéia muito inflamada. A gente pegava, vendia o espetáculo para colégios, professores de história, de sociologia. Eles vinham babando, aquilo fazia com que a gente entrasse no êxtase. Nós fomos convidados para participar desse festival, nós fomos para a Colômbia, com muita dificuldade, porque o governo brasileiro se recusou a dar qualquer tipo de ajuda, nós batemos na porta de todas as entidades, instituições, Ministério da Educação. Nós íamos representar o Brasil, então nós fomos pedir ajuda e simplesmente negaram, à exceção evidentemente da Secretaria de Educação de Santo André, porque tinha essa pessoa que era muito nossa amiga, que era o Müller. Ele catou, raspou, limpou, arrumou uma verba, só que a verba não era suficiente, então quem tinha condições pagava a sua passagem de avião, eu que vinha da classe média e para eles eu era burguesa, era vista como uma atriz burguesa, de família direitinha, virgem, aquelas coisas todas, não fumava, não cheirava, não fazia nada, então eu paguei a minha passagem, e alguns atores e atrizes também pagaram, e os que não tinham condições, essa verba ajudou. Nós fomos para Manizales, fizemos uma viagem que foi um tormento. Saímos daqui de São Paulo, fomos de ônibus, nós iríamos embarcar na Argentina, o avião era um avião da Avianca, que fez um vôo fretado para todos os grupos do mundo, todo mundo iria se encontrar no aeroporto da Argentina, quem estava vindo da Europa, quem estava vindo do Canadá, quem estava vindo dos Estados Unidos, era um festival internacional mesmo, tinha grupos de onde vocês nem poderiam imaginar, e nós íamos de ônibus para lá. Quando a gente estava em Porto Alegre, a gente parou na rodoviária para tomar banho, para se trocar, dar uma relaxada, a Sônia ligou para saber, eles disseram que tinham mudado a saída do avião da Argentina para o Uruguai, porque o Perón estava chegando na Argentina e a coisa estava com a Isabelita, a segunda esposa, e ele estava vindo da Espanha, a aeronave não queria parar, então nós mudamos e fomos para o Uruguai. No Uruguai, a gente embarcou nesse avião, fizemos uma viagem que tinha umas 12 horas, porque a Avianca é a aviação colombiana não tinha autonomia de vôo, então era em um teco-teco praticamente, que a gente viajou, nos Andes. Então viajava assim,  derrepente o avião caía e todo mundo gritava: Epa!, e subia. Em todas as línguas. No nosso grupo nós tivemos que substituir alguns atores porque alguns não podiam viajar, trabalhavam, não eram todos atores profissionais e nós não tivemos muito tempo de ensaiar, então nós fomos dentro do ônibus ensaiando, dentro do avião ensaiando e os outros grupos de teatro ficaram encantados porque nós tínhamos músicos,  os nossos músicos. A musicalidade do brasileiro é uma coisa que fora é muito querida e os músicos cativaram. No final eu lembro que a aeromoça até pediu para que a gente parasse de se movimentar demais no avião, porque tinha perigo de o avião cair porque a gente estava se mexendo muito. Chegamos em Manizales, que não é a capital, descemos em Bogotá, de Bogotá nós fomos a Manizales, mais um vôo de uns quarenta minutos de avião também pequenininho e apresentamos o espetáculo no festival. Quando estávamos lá, nós descobrimos que éramos o grupo mais importante do festival, nós não sabíamos, porque quem abre o festival de Manizales é o grupo mais importante, é o mais esperado, e nós fizemos a abertura, e aconteceu uma situação muito gozada. A gente, de um Brasil assim que a gente tinha muito receio do que era o Brasil, muito medo, um Brasil de militares, estava o vice-presidente da Colômbia que foi fazer a abertura, fez o discurso, tocou o hino colombiano, desceu a bandeira da Colômbia, o país que iria inaugurar, o mais importante, tinha o seu hino também tocado, e outro hino que foi tocado foi o do Brasil. Nós estávamos em um teatro que se chamava Fundador, um teatro que deve ter mais ou menos oitocentos lugares, ele estava lotado, com gente sentada na escada. A platéia se levantou e ficou de costas para a bandeira brasileira, que eu me lembre, praticamente a platéia inteira. Você fora do seu país, ouvindo o seu hino, é uma coisa que, se alguém já saiu daqui e ouviu o hino fora sabe o que eu estou falando, é uma coisa, uma emoção que você não pode imaginar, vem à boca o coração, o coração bate aqui na boca, vai sair fora, por pior que o país seja, você está lá representando. Estava subindo a bandeira, a platéia virou de costa, terminou o hino brasileiro, uma boa parte da platéia começou: Fora porcos imperialistas, fora porcos imperialistas! Porque o Brasil era para a América Latina o que os Estados Unidos era para o Brasil. Nós detestávamos os americanos, porque nós éramos os filhotes deles, o quintal onde eles jogavam tudo que tinha de ruim e nós fazíamos a mesma coisa. Os nossos militares eram terríveis para com os outros países, à exceção da Argentina e do Uruguai, nós éramos terríveis, nós ensinamos toda a tortura que eles sabem, foi idéia nossa. O pau-de-arara é uma invenção brasileira, por isso que chama pau-de-arara essa tortura, esse método de tortura e nós ensinamos para o chileno, para o peruano. vocês imaginam fazer um espetáculo nesse clima? O Taubaté, que é um ator que atua até hoje, fazia o papel que o Fagundes fazia na nossa montagem, o Fagundes não pôde ir, e o Taubaté, tresloucado, tinha cheirado tudo, fumado tudo que era permitido, entrou com um boné à moda Che Guevara, usava cabelo, que ele tinha cabelo comprido, totalmente diferente do que tinha no texto. O texto era Guerra de Canudos, com fato histórico tipicamente brasileiro, montado por uma trupe de circo, então o autor que escreve essa peça é um engolidor de fogo do circo, que não tem cultura, então ele mais ou menos pega a história de Canudos, pega os personagens de Canudos, o Conselheiro, mas na verdade ele monta a história de Cristo, porque o que o teatro de circo sempre monta era a história de Cristo, então ele pegou os personagens da história de Canudos, pôs dentro da história de Cristo, e o Taubaté veio de Che Guevara. Começou o espetáculo, teve assim gritaria. O espetáculo era muito bonito, empolgante e lentamente nós fomos cativando essa platéia, cativando essa platéia, e quando terminou, essa platéia aplaudiu de pé, por mais de 15 minutos. No outro dia teve uma discussão, havia um debate na faculdade de Manizales, todo mundo ia para a faculdade, os professores, os universitários e todos os grupos, eu ganhei um prêmio de atriz pelo personagem que eu fiz, eu fiz uma louca, uma desmemoriada; o Taubaté ganhou prêmio e lá nós tivemos a idéia da repercussão do nosso espetáculo. Nós fomos muito paparicados, e a gente voltou. Apresentamos esse espetáculo em Bogotá, durante uma semana, levando um cano do empreendedor. O cara pegou o dinheiro dos ingressos, toda a grana, deixou a gente sem nenhum tostão, nós tivemos que sair fugidos do hotel, o elenco era de 26 pessoas, então vocês imaginam o problema que é tirar vinte e seis pessoas escondidas de um hotel, porque não têm dinheiro para pagar. Daí nós fomos para o Chile. No Chile, quando nós estávamos levantando vôo, o Alend estava sendo assassinado, tinha várias aeronaves do Topolev da União Soviética, cada vez que se descia em um aeroporto, era um corredor, você era investigada de cima a baixo, faziam você tirar toda a roupa, passava por uma policial feminina que verificava se você tinha alguma coisa dentro dos seus órgãos genitais, era uma situação bastante desagradável, mas a gente superou tudo isso. Voltamos, só que não tínhamos mais o avião para o Brasil,  a gente teve que parar na Argentina. Chegamos em uma sexta-feira à noite, que tinha uma manifestação a favor do Alend, e estavam parados todos os meios de transporte, e nós tivemos que ficar cinco horas no aeroporto, sendo investigados por aqueles militares com armas. Eu não conseguia fazer contato em casa, a minha mãe ficou preocupada, apreensiva, porque eu fazer esse festival para ficar quinze dias fora, e fiquei um mês. Eu não tinha dezoito anos, eu tinha dezesseis, dezessete para dezoito anos. Para sair do Brasil ela precisou pedir uma autorização judicial, o juíz me autorizou a ir, porque meu pai, toda vez que podia, ele prejudicava, e essa foi uma das vezes também que ele veio para prejudicar. Não chegavam as cartas, eram censuradas, e a gente não conseguia falar. A única vez que eu consegui conversar com ela foi quando estava na embaixada brasileira em Bogotá e isso por que chorei para a embaixatriz. Ela falou: Está bem, eu vou te deixar falar no meu telefone pessoal. Ela fez uma ligação, o telefone dela não era grampeado. Depois disso, a gente continuou fazendo espetáculos e montagens que tinham um feitio político, eu fui fazer o Incidente No 113, que era toda uma peça de denúncia, uma peça que nós trouxemos de uma autora colombiana, e fui fazer o Moquimpó. O Moquimpó era uma peça de um grupo do Sul, que quando veio para São Paulo, a censura simplesmente podou o espetáculo de cabo a rabo, fechou. O Moquimpó é um texto de um judeu, é uma farsa montada para criança, o autor que veio dirigir é um diretor alemão pago pelo Instituto Goet. Quando ele chegou aqui, sentiu o ambiente, ele montou num tom que tinha uma conotação política muito forte. No dia de apresentar esse espetáculo para a censura, a censura falou: Não, não passa, não passa. Um dos personagens era Deus, e Deus era americano, ele falava com sotaque inglês, tinha cartola dos Estados Unidos, e não passou. Aí começou um movimento, e quem liderou esse espetáculo foi Elis Regina. Todos os teatros, antes de começar, falavam desse espetáculo, faziam um minuto de silêncio, o pessoal de teatro usava uma faixa de luto, e em dez dias, não mais que isso, ela conseguiu liberar. Ela foi para Brasília, ela era uma baixinha, pimentinha, fazia jus ao apelido, era uma pimenta mesmo. Como o grupo era do Sul, e ela era do Sul, de Porto Alegre, ela comprou aquilo como se fosse uma briga pessoal, e liderou esse espetáculo. Fizemos uma temporada longa, eu viajei quase que o Sul todo do país, de São Paulo para baixo; conheci meu marido, logo depois eu me casei e aí eu encerrei a carreira  profissional, porque eu fui ser mãe, dona de casa, professora, e fui fazer o curso de Direito, virar advogada e aí mudei a trajetória de vida. Mas a minha trajetória de teatro foi diferente do que a minha mãe vivenciou. A dela foi outra época, a minha é uma época que, infelizmente, acho que acabou por completo.

 

Pergunta:

Márcia, só voltando um pouquinho na época do Panelinha, você participou dos festivais dos festivais?

 

Resposta:

Na verdade, eu não participei de nenhum festival do Estado. Nós apresentamos O Ponto de Partida, que foi a estréia do festival aqui em São Bernardo, quando era para ser em Santo André, e não foi apresentado em Santo André, então foi feita a estréia desse festival, o festival era em nível estadual, todos os grupos que já tinham ganhado nas suas regiões vieram para concorrer ao 1º lugar do Estado de São Paulo e esses festivais eram muito disputados, as pessoas levavam muito a sério. Nesse período era um celeiro de atores, porque eram poucas as escolas, você não tinha muito acesso a isso, então as pessoas vinham, eram originárias de teatro amador, e eu fiz a abertura com O Ponto de Partida. Depois nós fizemos o Romanoff com o teatro amador e participamos de um festival, aí já não era do Estado, mas participamos de um festival em São Paulo, capital. Nesse período até minha mãe fazia um personagem, ela ganhou um prêmio como atriz coadjuvante nessa peça, eu acho que foram as duas únicas peças, além da infantil, em que eu trabalhei, tanto que, quando a Daniela me telefonou, eu disse que a minha trajetória era pouca dentro do teatro amador. Eu fiz o Pluft, com 9 anos, ainda não tinha muita idéia da coisa, eu fiz O Ponto de Partida quando eu tinha quatorze anos e fiz o Romanoff quando eu tinha 16, e entre Ponto de Partida e o Romanoff, eu fiz O Noviço com o grupo de teatro da cidade. Daí eu decidi que queria ser atriz profissional. E o teatro no Panelinha... Eu já estava tendo problemas porque eu já tinha outras opções, a vida tinha mudado, você tinha que brigar mais para ganhar dinheiro, para sobreviver, era com muito sacrifício que isso era feito. O teatro amador requer dedicação dos integrantes do grupo. Se os integrantes do grupo têm essa disponibilidade e aceitam, ele existe, senão ele não existe, porque você não ganha nada, muito pelo contrário, você teoricamente só perde, você perde o sábado, perde o domingo, você deixa de se divertir, você tem várias dificuldades. Então, no teatro amador, as montagens das quais eu participei foram essas; depois eu fui para o profissional.

 

Pergunta:

Qual era o clima do festival? Por que vocês falaram que os grupos colaboravam fora e dentro do festival?

Resposta:

Havia uma competição muito grande, havia uma disputa bastante grande, tinha rivalidades. Tinha um grupo de São Caetano, eu acho que era Scala, se não me falha a memória era esse o grupo de São Caetano que fazia uma briga muito grande com o grupo de São Bernardo que era o Regina Paes. Então, a cada ano, um grupo queria superar o outro, isso era uma disputa que no final ficava bastante saudável, porque querendo apresentar um espetáculo melhor, o grupo se preparava melhor, então, à sua própria custa, chamava alguém para dirigir, que tinha uma formação de profissional, e aí melhorava o espetáculo, o pessoal se preparava, cantava, fazia técnica vocal. Quando minha mãe foi presidente da Federação, ela inovou nesse aspecto porque até então o Pasqualine, que tinha sido presidente, não tinha se preocupado em trazer profissionais para melhorar a qualidade do profissional e isso foi durante o período da gestão dela. Ela trouxe várias pessoas para fazer introdução da história do teatro, teve técnica vocal, expressão corporal para se ter idéia dos movimentos que existiam, as pessoas que escreviam sobre teatro. O Estado de São Paulo tinha uma verba muito boa, a Cacilda Becker era uma mulher que realmente conseguia seduzir, então tinha texto, foi aí que surgiu uma coleção que se chama Teatro da Juventude, que eram textos para adolescentes, e aí os grupos cresceram, melhoraram. Se por um lado essa competição foi boa, o que aconteceu? De repente começou a aparecer gente-estrela, alguns que não se misturavam, não admitiam fazer um papel menor. O nosso grupo tinha essa característica, tanto eu podia fazer a atriz principal em uma peça como na seguinte eu ter que trabalhar de contra-regra. Eu passar roupa. Entendeu? Não tinha essa disputa: eu sou a atriz principal, eu falo bem, eu tenho postação, eu tenho melhor preparo. Então sempre os melhores papéis vão ser meus. Não, não tinha. E a gente verificava que em alguns grupos sempre tinha as estrelonas, e aí começou o grupo a ter problemas. O fato de ter esse envolvimento político, também fez com que os grupos começassem a ter brigas, porque alguns tinham posicionamento político antagônico do outro, um defendia os ideais da burguesia, até porque era originário disso, e outro tinha um movimento mais popular.

 

Pergunta:

Para finalizar, o que você gostaria de deixar registrado, com o seu depoimento, para os jovens e para as futuras gerações, sobre a sua experiência de vida?

 

Resposta:

Eu não sei se é o que eu gostaria de deixar registrado, mas é o que eu diria para os meus filhos. Eu tenho três: uma de quinze (anos), um de vinte e dois (anos) e uma de vinte e cinco (anos), e eu tenho pena deles por não terem o amor que eu tive a uma coisa. Não importa o que seja, eu acho que o jovem tem que ter esse amor. No meu caso, foi amor ao teatro: eu vivia, dormia, pensava teatro. Isso fez com que eu me dedicasse de corpo e alma a isso. Eu sinto que hoje a juventude, os jovens não têm muito esse amor, não têm esse empenho, não se descobriram. Eu tenho três filhos em casa, e eu observo que às vezes eles têm um entusiasmo efêmero, passa muito rápido; as coisas são muito consumíveis, digeridas, elas não se perpetuam. E eu não. Eu só lucrei com o teatro, eu só ganhei, até depois. Hoje eu sou profissional de direito, e eu uso a minha voz como se eu fosse uma atriz, eu dou aula, eu entro em sala de aula, como se eu estivesse representando, eu ganho a minha vida com o que eu aprendi no teatro, eu nunca perdi, e acho que essa grande paixão era o que a minha geração tinha de importante. Ela tinha inúmeras bobagens, ela tem coisas que realmente são bobas, essa briga, essa idéia que eu tinha que ia pegar arma e ia mudar o mundo, isso é coisa boba, ingênua, e hoje eu percebo. Mas nós tínhamos paixão, e essa juventude de hoje, os jovens, pelo que eu observo, até porque eu dou aula para o segundo grau e faculdade, então eu tenho os jovens, eu sinto que eles estão sem paixão. E tudo que você faz na vida sem paixão, morre, é sem graça. É bom quando você tem uma paixão, não importa qual seja, tem loucura por aeróbica, tem loucura por musculação, por corrida, sei lá, pode ser qualquer coisa, mas entre de cabeça. Eu acho que é o período da vida da gente, que a gente pode se apaixonar, porque quando vem a maturidade, não lhe é mais permitido se apaixonar. Com a maturidade você começa a ficar tolhido. Se você continuar se apaixonando, você vai ficar uma pessoa excluída e vão dizer que aquele não tem maturidade. É assim que imaginam, mas quando você é jovem você pode se apaixonar perdidamente por qualquer coisa. Isso faz parte, no meu entender, da juventude, a paixão, e seria talvez essa a mensagem que os jovens deveriam ter hoje, como o principal: o que eu amo? Eu estou perdidamente apaixonado? Além daquele bobinho que é seu namorado, isso não se conta. Mas assim, para a sua vida, para o seu crescimento pessoal, sou apaixonada por biologia, então entre de cabeça, eu sou apaixonada por golfinhos, então vou estudar golfinhos. Então acho que é o que falta hoje, que a minha juventude teve, o pessoal da minha faixa de idade. Tanto que você vai a festa, bailinho, é tudo música dos anos 70, e bota uma música dos anos 70, levanta tudo aquele monte de velhido dançando, sacolejando, uma juventude apaixonada. Eu acho que essa é a mensagem.


Acervo Hipermídia de Memórias do ABC - Universidade de São Caetano do Sul